Ousada, autoconfiante, visionária e sonhadora. Estes são alguns dos adjetivos mais usados para definir a personalidade de Franca Sozzani. Criadora de uma linguagem própria, a ex-editora-chefe da Vogue Itália transformou a publicação em uma referência para além do universo fashion.
Nascida na Itália em 1950 e formada em Filosofia e Literatura pela Universidade de Mantua, Franca ingressou no universo editorial em 1976, na Vogue Bambini, trabalhou na revista feminina Lei e assumiu o comando da Vogue italiana em 1987 – na qual permaneceria por 28 anos.
O idioma foi o primeiro grande desafio enfrentado por ela ao se tornar responsável pela publicação. Apesar de a Itália ser um país importante para o universo da moda, o fato de poucas pessoas lerem ou falarem italiano no mundo limitavam o alcance da revista. A estratégia escolhida por Franca para ultrapassar a barreira idiomática foi investir na contação de histórias por meio das imagens, um posicionamento que mudou para sempre os editoriais de moda.
“Eu queria me comunicar com todos, então pensei em criar imagens que fossem feitas para falar. O normal era a foto servir como um suporte para o texto, mas nós fizemos o contrário, reduzindo as palavras para o mínimo possível.”
Por acreditar que moda é muito mais do que roupas na passarela, a italiana fez da revista uma plataforma para reflexão de questões políticas e culturais que impactaram o mundo nas últimas três décadas. Apostando no talento e na visão de fotógrafos visionários como Peter Lindbergh, Bruce Weber e Steven Meisel, ela criou editoriais polêmicos que debateram questões como a fixação por cirurgias plásticas, direitos da população LGBT, o novo papel da mulher na sociedade, entre outras questões. “Atravessei vários mundos por meio do ponto de vista deles.”
Moda, Arte, Política e Reflexão
Em setembro de 2006, a publicação apresentou o editorial State of Emergency que remetia ao reforço no sistema de segurança dos aeroportos após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA. No ano seguinte, a revista discutiu a onda de reabilitação das celebridades em Supermodels Enter Rehab.
Black Issue – Steven Meisel
Inspirada pelo protesto contra racismo no segmento da moda realizado por um grupo de ativistas em Nova York, Franca lançou em 2008 uma edição especial apenas com modelos negras na capa e no recheio. Batizada de Black Issue, a publicação trouxe as modelos Tyra Banks, Liya Kebede, Sessilee Lopez, Jourdan Dunn e Naomi Campbell – além de ensaios com personalidades negras como a ex-primeira dama estadunidense Michelle Obama e o diretor Spike Lee – e buscou refletir sobre a importância da diversidade na moda. O impacto foi enorme: a edição foi a mais vendida da Vogue Itália, demandou duas reimpressões e aumentou em 30% a receita da revista.
The Black Barbie Issue – Cristina Dell’Oro e Gabriele Inzaghi
Em comemoração aos 50 anos da Barbie, e aos 30 anos do lançamento da Barbie negra, a editora lançou, no ano seguinte, um suplemento apenas com versões negras da boneca, batizado de The Black Barbie Issue. “A Barbie tem sido um ícone para gerações inteiras e é por isso que eu realmente quis dar um forte sinal de acordo com os tempos e dedicar a edição de aniversário à Barbie Negra“, declarou Franca na época.
Water & Oil – Steven Meisel
Em 2010, a revista voltou aos holofotes com o editorial Water&Oil. O ensaio trouxe a modelo Kristen McMenamy vestida de preto, coberta de óleo e jogada no meio de uma praia, numa clara alusão aos animais que morreram no acidente provocado pela British Petroleum (BP) e que resultou no vazamento de milhões de barris de petróleo no mar do Golfo do México.
Belle Vere – Steven Meisel
Em junho do ano seguinte, a publicação trouxe modelos plus size de lingerie em sua capa com o título Belle Vere, ou Belas Reais. Um ano antes, a publicação havia lançado em seu site o canal Vcurvy que apresenta conteúdo de moda para mulheres fora do padrão de beleza vigente.
“Um número cada vez maior de leitores quer ver o mundo real, habitado por pessoas reais, retratado na revista. São pessoas normais, não obcecadas em serem magras, que aceitam e respeitam seus corpos como eles são”
Mas nada foi mais polêmico que o editorial Horror Movie, de 2014, no qual a revista abordou a violência doméstica. Inspirado nos filmes de terror de diretores como Dario Argento e Stanley Kubrick, o ensaio se tornou notícia no mundo inteiro.
Horror Movie – Steven Meisel
Em uma das imagens, por exemplo, uma modelo aparece morta aos pés da escada vestindo um vestido vermelho da marca Prada enquanto um homem está sentado segurando uma arma. Numa outra foto, uma modelo surge ensanguentada e gritando em uma escada próxima ao seu agressor. Acusada de oportunismo, Franca se posicionou. “Na Itália, a cada três dias uma mulher morre assassinada por um parente, pelo marido ou pelo namorado. A ferramenta que eu tenho [para protestar contra isso] é uma revista de moda”, declarou.
“Não importa se corremos o risco de causar um tumulto geral com a mídia ou despertar críticas; ou se somos acusados de explorar questões sociais graves apenas para alavancar as vendas nas bancas de jornal. O que é importante para nós é que pelo menos uma das dezenas de mulheres que sofrem violência todos os dias possa sentir a nossa proximidade.”
No documentário Franca: Caos e Criação, dirigido pelo filho da editora, Francesco Carrozzini, o CEO da CondéNast Internacional Jonathan Newhouse, responsável pela edição da Vogue, contou que chegou a pensar em demitir Franca devido às constantes polêmicas relacionadas ao seu trabalho. “Editar revistas não é arte. É um trabalho comercial. Franca tinha ido longe demais”, relembra, no filme. “A moda é muito maior do que um vestido”, disse ela em uma entrevista. “Por que uma revista de moda não pode falar sobre o que está acontecendo no mundo? Não quero só que gostem da revista. Quando não gostarem, também teremos feito nosso trabalho”, acrescentou.
Ao lado de Anna Wintour, editora-chefe da Vogue EUA, de quem era amiga há três décadas, Franca formou a dupla mais poderosa e criativa do mundo da moda, descobridoras de grandes talentos e criadoras de tendências. “Ela não estava apenas à frente do nosso tempo. Ela estava à frente da nossa coragem, de muitas maneiras.”, declarou Anna em um discurso em homenagem à editora italiana.
Franca morreu em 2016, aos 66 anos, de um tipo raro de câncer do pulmão contra o qual lutava há um ano. Ela faleceu ao lado do filho. “É preciso ser leve na vida. Leveza para mim é quando a profundidade leva você a voar alto.”, disse certa vez. No mundo da moda talvez ninguém tenha voado tanto e tão alto quanto ela.